quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Ninhos

Cheguei da praia com o Alfredo e dei de cara com uma cena inesperada. Num daqueles vasinhos que ficam na entrada da casa, aqueles que reservo para as mudas que aparecem ou para os brotos que tiro das plantas, havia um ninho de ave. Na verdade, percebi que algo estava diferente quando vi soltas no chão as palhas e gravetos que restaram da obra. Desconfiei, mirei. Estava lá. Um desses que levam dias para aprontar e jazem para sempre vazios depois da gestação dos bichinhos.

E eu, você, todas nós oito, sabemos o quão pouco romântica é a aventura de um ovo, de um parto, de um nascimento. Lembra das caçadas que fazíamos aos ovos das codorninhas dos vizinhos? Elas ficavam dias catando ramos e fiapos de grama seca, entrelaçavam aquilo com o desespero de quem sabe que a hora urge. E nós, todas nós oito, devassávamos as hortinhas para rancar-lhes tudo em instantes.

Sabe, minha irmã, às vezes acho que deus – seja louvado – me pune por essas caçadas até hoje. Passa pela minha cabeça, sozinha na cama de casal, com o Alfredo dormindo no quarto ao lado, que meus ninhos sempre estiveram vazios. Que eu os preparei com tamanho afinco para nada. Que minha punição por perseguir as codorninhas foram setenta anos, de lá para cá, dedicados a fazer ninhos que permanecerão vazios.

Que minha primeira ninhada só abandonou a casa crescida, disso eu sei. Mas levou também a minha capacidade orgânica de gerar novos rebentos. Deixei em uma mesa de cirurgia os tecidos que abrigaram Alberto por tanto tempo. Desde então, meus ninhos são artificiais.

Como aquele que construí para a Fernanda, tão doce menina que não se habituou a uma casa conturbada, com um pai ciumento, um irmão quizilento e uma mãe que nela depositava seus desejos de plenitude. Foi-se depois de um tempo, deixou-me de presente uma jarra de suco, mas nenhuma foto. Por ela oro e choro.

Como aquele que tentei construir para o meu lindo Alberto, que amei e amo com convicção, mas que comigo tanto se arreliou e hoje me trata com desdém. Coisa de filho. (enquanto escrevo isso, penso que todos os ninhos são artificiais, não tem nada natural nessa história. Talvez eu seja, isso sim, uma péssima artesã.)

O nosso ninho também não era dos mais sólidos, maninha. Viemos cedo para um ambiente que não conhecíamos, dissolvemo-nos em lugares os mais distantes uns dos outros, morremos. Sobramos eu e você, minha amada. O último fiapo – ou talvez a última farpa – que nos liga ao ninho familiar vem da nossa relação. Sinto-me tão fraca.

Henrique, neto que me caiu no colo de mãe, foi minha última tentativa de construir um ninho que permanecesse. Manteve-se por anos, talvez mais que o do Alberto. Mas ruiu. Sinto que ele nutre raiva por mim, que me odeia. Alfredo o roubou da mãe, como se colocasse em minhas mãos um ovo a chocar. Eu cuidei, defendi, abracei, amei, mas não tem jeito. Como os ovos das codorninhas que enganamos – faz setenta anos, minha irmã! -, ele cobrou seu preço. Seguiu seu caminho e hoje me visita com carinho intermitente.


Coleciono vasos, planto flores. Nascem-me brotos todos os dias. Sei que nenhum é meu.